[Subterraneo] Cave de Vinhos

Finalmente tinha conseguido escapar as minhas sombras e estava a entrar na cave de vinhos, em busca da vítima desta noite.
A Lisa estaria no quarto à minha espera e hoje seria uma bela noite para cochichar e afogar as mágoas.
Percorri os corredores, vendo os diferentes vinhos que ali tínhamos.

Carregado de caixotes de vinho, entrei na cave. Não percebia exatamente para quê que eles queriam tanto álcool, mas pronto. Se este trabalho tinha de ser feito, preferia fazê-lo a deixar a minha mãe castigar o corpo.
Assim que entrei, pousei os caixotes sobre uma mesa. Ia começar a arrumá-los quando vi uma cabeleira loira a passear por ali.
Ergui uma sobrancelha e abanei a cabeça. Alguém ia fazer asneiras, novamente... Parece que a rapariga não aprende.
- Precisa de ajuda, princesa? - Perguntei com uma voz seca, aparecendo atrás dela.

Tive um pequeno ataque cardíaco quando ouvi uma voz masculina atrás de mim, saltando de susto.
- Não voltes a fazer isso ! - Exclamei num sussurro chateado, virando-me para ele. - Nic... - Reconheci a sua presença num tom aborrecido.
Como é que alguém tão atraente poderia ser tão "desatraente"? Não que essa palavra exista, mas Dominic abusa. Não sei como o Will o atura. - Não, obrigada. - Disse, voltando a virar-me para as garrafas.

Escondi um sorriso presunçoso quando a vi assustar-se com a minha presença. Era engraçado e até curioso ver como ela fazia-se de forte e, ainda assim, era tão frágil.
Estreitei o olhar perante a sua reação e principalmente quando disse a alcunha que os mais próximos me chamam. Não gosto de ouvi-lo na voz dela. Não somos amigos.
Pousei a mão numa prateleira, descontraído.
- Eu pressinto que precisas. - Disse, insistindo. - Que precisas de ajuda para sair daqui. - Clarifiquei. - Ou já não te chega de problemas para esta semana?

Mas... Mas quem achava que era ela para me dizer aquilo? Melhor ! Para me dirigir a palavra?
Olhei para ele, chateada.
- Lá porque és o melhor amigo do príncipe herdeiro de Spestigium, isso não te dá o direito de opinares sobre a minha vida ou sequer envolveres-te nela. - Devia ter as bochechas vermelhas de raiva. Ele dava cabo dos meus nervos. - Desaparece! - Ordenei, chateada.
No entanto, senti-me mal logo de seguida, olhando-o triste. Até ele achava que eu era um desastre ambulante.
Virei costas para ele, mirando o vinho sem qualquer vontade de fazer seja o que for.

A sua fúria aborreceu-me seriamente e as suas palavras nem se falam. Só a queria ajudar, ou talvez dar-lhe apenas uma indicação de que ela ia prejudicar-se. Novamente.
Mas a sua resposta só me deu razão do porquê detestar a miúda.
- Eu nunca abusei da minha amizade com o teu irmão para conseguir seja o que for. - Disse-lhe, chateado. Sinceramente, nem sei para quê que me estava a justificar. Ela era só uma pita mimada. 
Quando a sua expressão mudou, nem a sua tristeza me comoveu. Fiquei confuso, mas apenas isso. Ela não merecia mais nada. Achava-se a última bolacha do pacote. Só merecia desprezo. - Como queiras. Estraga mais a tua vida. Um dia destes ainda tens uma surpresa valente.

As suas palavras ainda me deitaram mais abaixo. Ele tinha razão. Ele sempre se manteve à margem da realeza. Sempre se respeitou a sua posição. Mas não lhe iria dar a razão. Ele sabia que a tinha e dizer que ele tinha razão só serviria para me humilhar.
- Uma surpresa? - As suas palavras seguintes apanharam-me desprevenida. - O que queres dizer com isso? - Perguntei, virando-me novamente para ele e impedindo-o de sair.

Eu tinha pensado na história do casamento quando lhe disse aquilo, mas foi inconscientemente. Da minha boca ela não iria saber de nada.
- Nada de especial. - Disse, virando-me para ela, mais calmo. - É só que tens tido sorte. As escapadelas e as asneiras, um dia, podem sair-te mal. Só te digo as coisas para teres cuidado.

Ergui a sobrancelha, relaxando novamente.
- Quem diria... Dominic Underwood a dizer-me para ter cuidado. - Trocei. - Nic, tem cuidado, se alguém te ouve a dizer essas coisas ainda pensam que te preocupas comigo. - Disse trocista. Apesar de tudo, eu gostava da sensação dele a preocupar-se comigo.

Bufei, aborrecido. Virei-lhe as costas.
- Ambos sabemos que isso não é verdade. - Disse, incomodado pelas suas palavras. Eu não gostava dela, por isso não me preocupava com ela. - Venho arrumar isto depois.
Saí dali sem dizer mais uma palavra. Se continuasse ali, aquilo ainda ia dar para o torto, novamente.

Vi-o sair e não o impedi. 
As suas palavras magoavam. Não sei porquê, dado que ele tinha razão. Como é que alguém podia incomodar-me tanto?
Abanei a cabeça, esquecendo-me dele e peguei numa garrafa ao calhas. Escondi-a debaixo do casaco e saí.

Entrei sorrateiramente na cave, pegando numa garrafa de vinho ao calhas e sentando-me num canto escuro. Não era um sitio de grande conforto, mas sentia-me segura ali. Era distante e escondido, numa zona onde os meus pais não vinham e tinha álcool. 
Abri a garrafa e bebi logo, esperando que aquilo me fosse acalmar. Não ia fazer e eu sabia-o. Senti todo o meu corpo tremer e enrolei-me numa bola, começando a chorar.

Consegui facilmente localizá-la na cave e, sem fazer barulho, fui até ela. Encostei-me na prateleira em frente a ela, mas não me aproximei muito mais.
- Há espaço aqui para mim?

Senti a presença de alguém, mas não reagi. Fiquei simplesmente ali, enrolada numa bolinha triste. Porém, quando ouvi aquela voz, ergui o olhar, limpei as lágrimas e mirei-o com frieza, sentindo a raiva surgir.
- O que queres? Vens infernizar-me é? Estás com azar, já me destruíram completamente!

Ajoelhei-me rapidamente diante dela e segurei as suas mãos, querendo mostrar-lhe que vinha em paz.
- Não ! - Exclamei. - Só te quero ajudar.

Olhei para as suas mãos e depois para os seus olhos, desconfiada.
- Porquê? - Perguntei, bruta. - Nós não somos amigos, nunca fomos nem nunca quiseste ser. Porquê que te lembraste agora de me querer ajudar?

Revirei os olhos, mas arrependi-me. Ela não precisava daquilo naquele momento.
- Também nunca mostraste grande interesse em ser minha amiga. - Disse simplesmente. - Mas isso não interessa. Neste momento sei que precisas de alguém e, mesmo que me detestes, não me importo que seja eu.

Olhei para ele, percebendo que ele tinha razão. Sim, eu também nunca tentei. Mas sempre nos odiamos. Não sei porquê, mas sempre nos demos mal, desde pequenos.
Suspirei fundo, fazendo sinal para ele se sentar. Assim que ele o fez, estendi-lhe a garrafa.
- Tu ouviste o que aconteceu, não foi? - Perguntei, recordando-me do seu dom.

Sentei-me diante dela e, assim que me estendeu a garrafa, bebi um pouco.
- Sim, ouvi. - Admiti, depois de engolir. - A tua mãe não deveria ter-te feito o que fez. Nenhum deles devia. -  Disse. - Não acredito que vou dizer isto, mas tu tens razão.

Apesar de me sentir despedaçada, não consegui não rir quando ele me deu razão. O que me fez rir não foram as suas palavras, mas a sua expressão ligeiramente despreocupada. Acho que ele nunca tinha sido assim comigo. Bem, para dizer a verdade, nunca tinha sido assim com ele.
- Em quê?

Olhei nos seus olhos, lembrando-me do beijo que partilhamos.
- Todos devíamos ser livres para amar quem desejássemos, independentemente da classe social. - Disse, atirando novamente a lembrança para um canto. Eu não a desejava. Aquele beijo não tinha significado nada. Foi só um momento fruto do álcool dela e da adrenalina. - O único que devia comandar isso é o coração.

Olhei para ele, sentindo que o vi-a pela primeira vez na vida. E talvez o visse verdadeiramente pela primeira vez.
- Tu também não és muito livre, pois não? - Perguntei. - Por isso é que andas sempre tão afastado e sisudo.

As suas palavras surpreenderam-me e questionei-me se ela saberia algo mais sobre mim.
Mas não, não podia saber. Esse era um segredo bem guardado.
- Não, não sou. - Disse. - Mas eu já aceitei a minha vida. - Acrescentei. - E tu, vais aceitar a tua?

Não hesitei na minha resposta. Não pestanejei nem um pouco. Eu sabia o que o meu coração queria e ia ouvi-lo.
- Não, não vou aceitar. - Disse. - Eu sou a Princesa Katherine de Spestigium. E eu vou descobrir uma forma de contornar isto. A minha mãe não se vai ficar a rir.